Conto

Postado por Granja Ceará 16 março, 2010

CHIQUINHO PERCEBE TUDO

*autor: Agenor Bevilaqua

       Sebastião Raimundo da Silva, trabalhador rural, morador num pequeno sítio nos Cágados, me aparecia em Santa Teresinha velha, onde eu residia e tinha minha bodega, sempre pedindo ajuda para doentes de sua casa, ora a esposa, que não cheguei a conhecer, ora para os filhos, e também para ele, asmático, dizia ele, desde bebezinho. Levava sempre o que comer.

         A ajuda era sempre um fiado de que nunca achava jeito de pagar uma parcela prometida e nunca realizada.

         Cada vez que ele aparecia, eu já estava sabendo que o seu débito crônico ia ter uma cifra maior. Prometia que, a Deus querer, ia me pagar. Só que até o Natal de 1940, quando mais uma vez surgiu, pude ficar sabendo que Deus continuava sem querer que ele amortizasse seu débito. Nesse dia não me falou de doença. Estava sem jeito para essa batida história.

         Trouxera seu filho Francisco, garoto de uns 7 ou 8 anos, magrinho, canelinhas finas, olhos de quem passa fome, que foi se sentando no balcão do estabelecimento, onde tinha me visto sentado, entendendo eu que ele pensara ser tal postura moda da casa.

         Sebastião tirou a masca de fumo da boca coloria e jogou-a lá fora, por cima do parapeito do alpendre. Senti que ele estava querendo me dizer alguma coisa, faltando, no entanto, coragem para isso.

         Achei, assim, uma maneira de começar alguma forma de entendimento com ele. Disse-lhe que precisava que fosse pilada uma porção de arroz em casca, que serviria ainda no almoço imediato. Indiquei o pilão, na cozinha, colocando uma saca de arroz em casca ao lado do pilão.

         Deixei-o trabalhando e voltei para a bodega, onde ficara o Chiquinho – assim era chamado pelo pai –, e disse ao garoto que descesse do balcão e se sentasse num tamborete que a ele eu indiquei.

         O garoto se pôs de pé, olhou-me nos olhos e perguntou por que o pai não tinha uma bodega, se eu, “Seu Genô”, tinha uma.

         Respondi-lhe que essa pergunta ele deveria fazer ao pai dele. O menino respondeu que isso já perguntara ao pai, que respondera que essa era uma pergunta besta, para a qual não havia resposta.

         E, insistente, afirmou: “Meu pai é inguinorante. Ele não sabe. Mas Seu Genô sabe e quero que me diga. Por que é, Seu Genô?”.

         Sem esperar resposta, continuou: “Eu sei, Seu Genô. É porque tu é rico e meu pai é probe. Quem falou direito foi minha mãe, quando ouviu meu pai dizer que minha pregunta era besta”.

         Calou-se e esperou que o pai terminasse a pequena tarefa de produzir no pilão o suficiente para o almoço, que estava sendo preparado pela Laura, na ocasião governanta da minha moradia.

         Bastião vinha suado. Do pote de água no alpendre, tirou uma caneca de água. Lavou a boca e nela enfiou outra masca de fumo. E disse ao garoto que o percebera estar a me fazer perguntas de menino tolo.

         Chiquinho falou: “Pai, Seu Genô já viu que tu tá com os pés no chão. Tuas sandaias num prestavum mais e tu jogou elas fora. Olhei as que Seu Genô tá calçandu. Ele tem pra vender otras gualzinha essa aí. Num vai querer que os espin e os tocos fure teus pé”.

         Bastião resmungou: “Chiquinho, tudo que se compra é com dinheiro. Tu sabe que eu não tenho nem um tostão!”.

         — Seu Genô pra ti vende fiado. E puveita compra pano pra minha mãe fazê um vistido.

         E apontou para uma peça de tecido que estava numa das prateleiras. Eu estava perplexo. Nunca tinha visto tanta desenvoltura num garoto como aquele.

         Bastião repetiu que não tinha dinheiro. Que era bom o filho parar de se meter em coisas de gente grande. E que eu desculpasse o atrevimento do menino.

         O garoto, contudo, voltou à carga: “Minha mãe só tem um vistido. Vistido muito ruim. Feito de pano de saco que vem com farinha de fazê pão. Foi ela que custurô com aguia  de mão, porque num tinha dinhero pra pagar a custurera”.

         E dirigindo-se a mim continuou: “Seu Genô, a sua Laura tá cum vistido bunito chei de fulô e gaios verdi de mato, esse mermo pano qui tá aí na pratilera e eu falei. Vêndi as sandaia pru meu pai e o pano bunito pru vistido da minha mãe. O pai num tem dinhero, mas eu, quando crescer, te pago”.

         Sem obter a minha resposta ainda disse: “A tua muié tá com as vasia cheia de cumida. Tu manda que ela me dê pra levar pra minha mãe, meu irmão e minha irmãzinha essa cumida. Lá tão tudo cum fome e eu também tô, mais só vô comer junto com eles”.

         Mandei que fosse dada a comida solicitada pelo garoto. Fiz o Bastião escolher a sandália própria para os pés dele, medi 3 metros do tecido indicado pelo Chiquinho e disse ao Bastião:

         — Contenta-te só com isso porque eu tenho de dar presentes de Natal a outras pessoas. Esse é o teu.

         Bastião pegou os objetos doados mais o tigelão de comida, segurou a mãozinha do Chiquinho e me disse: “Deus que te ajude”.

         O garoto, já saindo, olhou-me e falou: “Minha mãe é bunita. E cum esse vistido fulorado vai ficar mais bunita!”. E emendou:

         — Seu Genô, fica sabendo que eu vô ti pagar. E eu inda vô tê uma budega como tu.

         Aprendi naquele dia – Natal de 1940 – com aquele menininho uma lição que me levou a refletir extensamente sobre timidez e audácia: Bastião, o tímido, e Chiquinho, o audaz.

#Pense nisso